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Lia Clark e Pabllo Vittar juntas: parcerias explosivas

A HORA E A VEZ DO

FUNK-POP LGBTQIA+

No passado tachado de machista e sexista, gênero se torna plataforma de representatividade e abriga artistas de minorias sexuais que viraram estrelas nacionais

por_Isaque Criscuolo de_São Paulo

Lia Clark e Pabllo Vittar juntas: parcerias explosivas
No passado tachado de machista e sexista, gênero se torna plataforma de representatividade e abriga artistas de minorias sexuais que viraram estrelas nacionais

por_Isaque Criscuolo de_São Paulo

A força pulsante e irresistível do funk já ultrapassou fronteiras e vem ganhando espaço em outros países, num convite democrático para todo mundo dançar e criar junto. Mas nem sempre foi assim. Por anos repleto de letras que exaltavam um ideal equivocado de masculinidade e diminuíam as mulheres, o gênero agora se abre com força à comunidade LGBTQIA+, que se apropria das suas batidas — “puras” ou misturadas ao pop, ao trap e a outros sons eletrônicos — como uma plataforma de expressão e representatividade.

foto_Miro

A cantora, compositora e drag Lia Clark

Nomes como Gloria Groove, Pepita, Lia Clark, Kaya Conky, Linn da Quebrada, Irmãs de Pau e Jup do Bairro vêm militando no funk-pop e brilhando nacionalmente. Elas trilham o caminho de pioneiras das quais hoje quase não se fala. “Historicamente, vale lembrar da Lacraia, uma precursora neste movimento que, apesar de ser dançarina, era um corpo negro e LGBTQIA+ nos palcos e no funk. O funk dá uma liberdade artística que outros gêneros (e seus públicos) talvez não aceitassem tão bem", diz Bruno Costa, jornalista e produtor de cultura e lifestyle da revista ‘Vogue Brasil’.

O funk sempre foi sobre mostrar a realidade, nua, crua e sem pudores, das favelas e de comunidades excluídas da sociedade. Faz todo o sentido, portanto, que drag queens e mulheres trans se apropriem dele como plataforma para expressar a própria sexualidade e normalizar seus corpos na indústria mainstream.

Gloria Groove: experimentos funk
Gloria Groove: experimentos funk

"Nos últimos anos, vimos a drag queen e outras expressões queer ultrapassarem a fronteira de uma cultura underground e começarem a aparecer no mainstream. Não que, antes, não fossem essas culturas LGBTQIA+ que inspirassem e fossem apropriadas por diversas artistas pop, tanto no contexto brasileiro quanto nos Estados Unidos. Como exemplo, cito a apropriação do (movimento) voguing, da cultura ballroom, por Madonna nos anos 1990. O que ocorre de diferente agora é que temos visto o corpo queer protagonizar performances pop", comenta Christian Gonzatti, doutor e mestre em Comunicação, especialista em gênero, sexualidade e cultura pop.

Muitos defendem que o fenômeno global do reality show “RuPaul's Drag Race”, um grande concurso de talentos protagonizado por drag queens, além de ter ampliado a visibilidade dessa cena, empoderou artistas e seus públicos, que antes não se viam tão representados na cultura pop ou no funk. De acordo com Christian Gonzatti, é a partir desse movimento que artistas como Pabllo Vittar conseguiram gerar uma explosão no mainstream nacional e abrir espaço para os LGBTQIA+ em gêneros como o funk.

Kayka Conky: uma das drags mais famosas do funk
Kayka Conky: uma das drags mais famosas do funk

"Acho que não é apenas um resultado da versão brasileira de RuPaul, mas a junção de diversos outros fatores: a ascensão de Pabllo Vittar, a presença de cantoras drags em festivais, Gloria Groove conquistando o público na TV aberta (desde o programa do Luciano Huck), os blocos de carnaval (drags)… Acredito que a cena está sendo mais valorizada conforme a própria sociedade se abre para a aceitação e o respeito a essas artistas", enfatiza Bruno Costa.

Lia Clark é uma das pioneiras do funk-pop e ganhou notoriedade logo depois de lançar seu primeiro single, "Trava Trava”, em 2016. O segundo grande sucesso foi "Chifrudo (feat. Mulher Pepita)”, que se consagrou como um hino de Carnaval LGBTQIA+ e é fruto do seu primeiro trabalho, "Clark Boom - EP". Considerada a primeira drag queen no universo do funk brasileiro, Lia é tida como uma pioneira do fenômeno do pop drag no país, que teve início após o estrondoso sucesso de Pabllo Vittar. Seu mais recente álbum, “Lia Clark”, conta com parcerias com Valesca Popozuda, Tati Quebra Barraco, Pabllo Vittar e MC Naninha

Para Valesca Popozuda, uma das pioneiras no cenário funk brasileiro feminino, que já fez parcerias com Gloria Groove e, recentemente, Lia Clark, a presença de drags como grandes nomes do gênero em tudo se choca com o seu próprio começo, no finalzinho dos anos 1990.

"Quando eu iniciei minha carreira, o funk estava experimentando suas 'primeiras vezes’. Primeira vez na TV, primeira vez na rádio, primeira vez em shows grandes, e por aí vai. Hoje em dia, tudo isso é mais comum. Ainda falta muito caminho para um respeito total, de igual para igual, mas avançamos sem dúvidas nesse caminho", diz.

"Eu fui a primeira drag a cantar funk, e estamos falando de duas artes que sempre sofreram muito preconceito por parte da sociedade. Pra mim, ser drag e cantar funk representa a minha liberdade, a minha força, a minha vontade de inspirar e fazer com que as pessoas nos enxerguem. Sempre fiz meu trabalho com muito amor. Por isso, hoje fico muito feliz quando falam que sou referência. Minha história não foi fácil, mas me orgulho muito de aonde cheguei” diz Lia.

Kaya Conky é outro nome de destaque da cena drag funk. Nordestina, ganhou notoriedade nacional com o hit “E aí, Bebê”, que ficou na posição 17 entre os 50 Virais do Brasil no Spotify e consolidou a cantora como um dos grandes nomes da música LGBTQIA+.

Depois, ela lançou “Quebradinha” e “Marmita”, em colaboração com Mulher Pepita, destacando-se no mercado como uma das drags mais relevantes do Brasil. Ano passado, lançou seu primeiro álbum, "Sextape", com parcerias com Grag Queen, Batooke Native e Puterrier.

A cantora, compositora e drag Kayka Conky

"O funk abraça muitas possibilidades, engloba muitas nuances (visualmente e musicalmente), a gente consegue encontrar muito espaço para trazer narrativas, sejam mais safadas ou mais engraçadas, sérias, mais conscientes… Ou, às vezes, só pra falar de amor e até mesmo pra falar sobre nada, propor algo mais envolvente, mais na dança. Acho que a maior prova disso é que qualquer sample praticamente pode virar um funk bom, qualquer som de qualquer coisa consegue se transformar num funk que muita gente vai gostar, dançar e se envolver", afirma Kaya.

Para Lia, ainda existe uma grande parcela da sociedade que é preconceituosa em relação à comunidade LGBTQIA+ e ao gênero funk. Furar essa bolha é desafiador — mas ela tem conseguido.

Em seu último álbum, Lia lançou uma parceria estrondosa com Tati Quebra Barraco e Valesca Popozuda na música “Pentada++”. A artista conta que essa foi uma parceria dos sonhos e que demorou a acreditar que fosse real.

"Elas são grandes referências pra mim. Lançamos uma música super pra cima, e ficou incrível. As duas abraçaram meu projeto, se dedicaram demais à faixa, e eu sou apaixonada por elas. Esses feats são um grande marco na minha carreira", diz Lia Clark.

"Existe essa barreira, que envolve o preconceito, o machismo, a misoginia, mas estamos quebrando aos poucos. Apesar disso, cada vez que eu lanço minha música, que eu ecoo minha voz ou dou um novo passo, ocorre uma pequena revolução para a comunidade, uma nova contribuição para um cenário mais amplo de inclusão e aceitação", raciocina. “Fico feliz em ver o crescimento e o reconhecimento das drags. A gente veio para ocupar espaços nessa indústria.”

FICO FELIZ EM VER O CRESCIMENTO E O RECONHECIMENTO DAS DRAGS. A GENTE VEIO PARA OCUPAR ESPAÇOS NESSA INDÚSTRIA.

Lia Clark, cantora e compositora drag
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