por_Eduardo Lemos • Bath, Inglaterra
A mudança climática está se tornando um hit nas discussões sobre o presente e o futuro da indústria musical - e isso inclui o mercado brasileiro, é claro. Segundo o estudo “Mudanças climáticas e festivais: fatos e perguntas para discutir o assunto”, realizado por Juliana Castro, do brasileiro Mapa dos Festivais, ao menos onze eventos musicais em 2023 foram impactados por questões relacionadas ao clima no mundo. No Brasil, só por conta de tempestades, houve festival cancelando um final de semana inteiro de shows (Daki Fest, em São Paulo) ou mudando de lugar (Avante, em Porto Alegre).
A estadunidense Billie Eilish usa uma camiseta com o slogan da ONG Music Declares Emergency: "Não Tem Música Num Planeta Morto", diz a mensagem
E houve uma vítima fatal: Ana Clara Benevides Machado, a fã de Taylor Swift que morreu de exaustão térmica após passar mal no show que a cantora estadunidense fez em novembro passado, no Rio de Janeiro. Naquele dia, o calor era de 40º, e a sensação térmica, de 60º. A T4F, organizadora do megaespetáculo, foi duramente criticada por proibir que o público acessasse o Estádio do Engenhão carregando sua própria água. Dias depois, o Ministério da Justiça editou portaria que libera a entrada com garrafas d'água em espetáculos, e "ilhas de hidratação" devem ser oferecidas quando houver alta exposição ao calor.
Mas, além dos espetáculos ao vivo, onde o mercado da música contribui para o aquecimento global? Bom, anote aí: do transporte de equipamentos de som à quantidade de energia elétrica usada por casas de show. Do impacto ambiental que está por detrás da produção anual de milhões de CDs e vinis até o custo ambiental de bilhões de plays no streaming. Grandes estrelas que poluem a atmosfera com suas viagens de avião ao redor do mundo. Festivais que geram montanhas de lixo a cada edição.
Se, há poucos anos, era mais difícil encontrar exemplos práticos de como o mercado musical pode se mexer a favor do planeta, agora as ideias parecem vir de todo canto. O LP, por exemplo: o principal componente de um disco de vinil é o plástico cloreto de polivinila (PVC), feito de produtos petroquímicos. Algumas fábricas de prensagem ainda usam caldeiras a vapor e uma mistura tóxica de produtos químicos para produzir os bolachões, fazendo com que o vinil emita 12 vezes mais gases de efeito estufa do que outras produções de mídia física, como CDs.
A Warner Music Group anunciou em fevereiro que continua o seu plano de abandonar o vinil 180g para reduzir o impacto ambiental durante a produção. "Estamos entusiasmados em informar que, em 2022, prensamos cerca de 60% de nossos produtos globais de vinil em discos de 140g, reduzindo nossa produção de plástico virgem bruto em aproximadamente 470 toneladas”, diz o mais recente relatório ESG da empresa.
A companhia também está investindo em formas de produzir discos sem usar PVC e passou a reciclar vinil proveniente de sobras de produção que, de outra forma, iriam parar em aterros sanitários.
A própria música, no entanto, tem mostrado o caminho de saída. O número de artistas engajados no tema só cresce. E o público parece que não quer mais só diversão e arte, mas também boas práticas ambientais de todos os envolvidos.
No mundo independente, também há bons exemplos. O selo britânico Ninja Tunes, que abriga estrelas indie como Kamasi Washington e Roisin Murphy, promete neutralidade de carbono em todas as suas operações até 2026. Para já, o selo buscou fontes renováveis de energia para todos os seus escritórios e passou a produzir as capas de CD e vinil com cartão e papel FSC de origem sustentável, além de utilizar frete marítimo em vez de aéreo e tornar público seus dados de streaming para empresas que pesquisam o impacto do digital no meio ambiente.
EMERGÊNCIA GLOBAL
Já existe até uma associação dedicada exclusivamente a estudar a relação aquecimento global-música. É a Music Declares Emergency (Música Declara Emergência), criada no Reino Unido e que conta com apoio de artistas como Billie Eilish e Brian Eno, além de figurões da indústria como Tim Major (vice-presidente de edição da Sony Music UK). Até o mais tradicional prêmio britânico da música, o BRIT Awards, se rendeu ao tema e, para sua 44ª edição, que acontece agora em março, convidou o MDE para "mostrar ao público maneiras de se envolver em ações positivas contra a mudança climática.”
Em seu manifesto, a ONG, fundada em 2019 e formada por artistas e profissionais da indústria, diz que "a música, os músicos e as empresas musicais, através do seu poder cultural e econômico único, podem liderar o caminho na exigência de mudanças sistêmicas necessárias para garantir a vida na terra.”
O coletivo também defende que a indústria musical se tornar verde é uma ação didática, porque se utiliza de sua popularidade para mostrar ao mundo que, sim, é possível produzir de forma sustentável. E o slogan não alivia: No Music On a Dead Planet (“Não tem Música num Planeta Morto") é a frase que, desde 2022, estampa camisetas, adesivos e outros produtos produzidos de forma sustentável pela associação.
Com filiais na Europa e nos Estados Unidos, o MDE chegou ao Brasil em 2023 pelas mãos de Julia Neiva, empreendedora no mercado da música. "Nossa principal ferramenta de ação, neste começo, têm sido as redes sociais, que nos ajudam não só a nos conectar com novos artistas, mas com os fãs que começam a entender que os shows e festivais que frequentam precisam ser repensados. Tudo isso divulgando dados concretos sobre a mudança climática e os impactos produzidos pela indústria musical", explica Giovanna Fabrega Pauletto, voluntária e representante do MDE.
O britânico Brian Eno, que criou o selo de pegada ambiental EarthPercent
Mas tornar-se mais verde pode ser um desafio caro para as indústrias musicais em países desiguais como o Brasil. Segundo Daniela Swidrak, jornalista musical e também voluntária do MDE no Brasil, "conscientização é o primeiro grande passo, acima de tudo".
Para produtores de shows e festivais, por exemplo, Swidrak faz uma lista de pequenas mudanças que já trazem impacto ambiental positivo. "Pode ser na escolha do copo que você vai usar, ou da quantidade de banners que você vai imprimir, e quais materiais serão utilizados. Pode ser na hora de contratar as empresas que vão fornecer seus serviços, optando por fornecedores sustentáveis, ou na escolha do local onde o evento vai acontecer e como o espaço será cuidado, depois, para manter o equilíbrio, além do incentivo do uso de transportes coletivos", lista Daniela.
PRESSÃO SOBRE O PODER PÚBLICO
De acordo com as ativistas, é importante comunicar ao público que essas ações não são cosméticas, mas que geram consequências reais na vida de cada um. "É também interessante incluir a população local com questões de trabalho ou doações, ter o incentivo e fiscalização do poder público, que também atua como agente facilitador para essa transição.”
Aliás, uma das linhas de atuação do MDE dentro e fora do Brasil é na pressão ao poder público. "O governo precisa ser um grande aliado no tema. No Estado de São Paulo, por exemplo, existe uma lei que estabelece regras para a gestão de resíduos sólidos gerados em eventos, e que dá as diretrizes para o descarte adequado. Isto incentiva as cooperativas a atuarem na cadeia econômica de reciclagem, além de trazer benefícios ambientais, sociais e econômicos", exemplificam.
Daniela Swidrak (no centro), jornalista musical e voluntária do MDE no Brasil
A música, os músicos e as empresas musicais, através do seu poder cultural e econômico único, podem liderar o caminho na exigência de mudanças sistêmicas necessárias para garantir a vida na terra.”
Manifesto da ONG MDEARTISTAS ENGAJADOS
Os artistas também estão indo além de compor canções sobre o tema ou fazer discursos no palco. Em 2019, os ingleses do Massive Attack se uniram à Universidade de Manchester para mapear a pegada de carbono de suas turnês e produziram um “guia” para a indústria, que incluía reduzir kits de instrumentos levados em viagens e parar de viajar em jatos particulares. (Taylor Swift, aliás, recentemente foi criticada por usar avião próprio na sua Eras Tour). Em agosto, o Massive Attack promete realizar um festival de música que vai usar 100% de energia renovável.
Já o rei da música ambiente, o britânico Brian Eno, criou o EarthPercent, um selo que vende músicas inéditas de medalhões do quilate de Coldplay e Nile Rodgers e pede que artistas repassem uma pequena porcentagem de seus ganhos para a iniciativa que, por sua vez, envia o dinheiro direto para ONGs e projetos de sustentabilidade ao redor do mundo. Segundo o artista, "uma das coisas mais impactantes que a música pode fazer é conseguir dinheiro o mais rápido possível para aqueles que estão na linha da frente da luta contra a emergência climática."
No Brasil, a ode à natureza e os pedidos de cuidado com o planeta são quase um gênero musical à parte - de Beto Guedes em "Sal da Terra", de 1981, a Lenine e Carlos Rennó em "Quedé Água", de 2015. Mas ainda é tímida a face mais ativista dos artistas, segundo Giovanna e Daniela, do MDE Brasil. "Muitos artistas brasileiros ainda não se sentem no lugar de estar à frente desta questão de sustentabilidade e mudança climática. Alguns, inclusive, pediram dicas de como ser mais verdes", relatam. Elas planejam lançar materiais que expliquem como ter um rider técnico mais sustentável, o que inclui a famosa lista de comidas, bebidas e infraestrutura de um camarim.