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Quando a

música caiu

na rede

O surgimento de Orkut e Facebook, em 2004, dava início à era de consumo e difusão de canções pelas redes sociais. 20 anos depois, muitos se perguntam: existe vida para a indústria fora das amarras dos algoritmos?

por_Eduardo Lemos de_Bath, Inglaterra

O surgimento de Orkut e Facebook, em 2004, dava início à era de consumo e difusão de canções pelas redes sociais. 20 anos depois, muitos se perguntam: existe vida para a indústria fora das amarras dos algoritmos?

por_Eduardo Lemos de_Bath, Inglaterra

Até o início de 2004, o fã de música que quisesse explorar as novidades do mercado tinha algumas opções: correr pra seção "lançamentos" de alguma loja de discos, ficar de olho nos cadernos de cultura dos jornais impressos, assistir a programas da MTV ou, se o nosso personagem aqui fosse mais 'antenado' (uma palavra bem anos 2000, aliás), já saberia da existência do Myspace (surgido em agosto de 2003).

"Hoje, na internet, temos a sensação de que existem mundos paralelos com pessoas que têm milhões de seguidores e nunca ouvimos falar.

Bruno Trindade, sócio-diretor da b+ca

E aí vieram o Orkut e o Facebook.

Passadas duas décadas, com poucas exceções, a grande maioria das pessoas consome e descobre música de um jeito só: através das redes sociais. E a força conquistada por duas das plataformas mais populares tem tudo a ver com isso. O Orkut espalhou pelo Brasil o conceito de comunidade digital e facilitou o encontro virtual de fãs de uma mesma banda ou gênero. Já o Face foi simplesmente o principal canal para falar sobre qualquer coisa (inclusive música, claro) por quase duas décadas no planeta, mantendo ainda sua enorme força em diversos países.

A herança que deixaram é tão forte que especialistas são unânimes: em 2024, nenhuma carreira musical vai decolar sem fazer bom uso das redes sociais.

Em 2004, apenas duas músicas sertanejas apareceram na lista das 10 mais tocadas daquele ano. Em 2023, todas as dez primeiras colocadas eram desse gênero. Uma das razões? Redes sociais. "Elas permitiram que os artistas sertanejos alcançassem um público mais amplo e diversificado, ultrapassando barreiras geográficas e conquistando fãs em diferentes regiões do Brasil. Esse uso estratégico e eficaz das redes sociais por parte dos artistas sertanejos foi crucial para a sua evolução e ascensão nos últimos 20 anos, contribuindo para a expansão do público, o fortalecimento da marca pessoal e a consolidação do gênero como um dos mais populares e bem-sucedidos no cenário musical brasileiro", argumenta Thiciane Rosa, que trabalha com artistas como Michel Teló e Bruno & Marrone.

"É incontestável a relevância das redes sociais como oportunidade para artistas de qualquer etapa de carreira", define Marina Mattoso, diretora da Jangada, agência de marketing digital que atende a nomes como Gilberto Gil e Jorge Aragão.

 Lorem Autem

Marina Mattoso: 'É incontestável a relevância das redes como oportunidade para artistas'

"Há 20 anos, a divulgação de show, por exemplo, se dava através de planfetagem, rádio e TV. Essa forma de se comunicar continua importante, mas as redes sociais alcançam o público de uma forma vasta e rápida", exemplifica Thiciane Rosa, responsável pelo marketing digital de Michel Teló e pela gestão de comunicação de artistas como Bruno & Marrone e Enzo Rabelo.

"A presença digital não é mais uma opção para o artista, e sim uma necessidade", arremata Caroline Steinhorst, sócia-diretora da b+ca, especializada em estratégia e conteúdo para o mercado da música, e que atende a estrelas como Ludmilla, Leo Santana, Jorge Ben Jor e Jão.

De fato, nem aquelas figuras notoriamente tímidas, como Chico Buarque, abrem mão de um perfil de Instagram atualizadinho, mesmo que tudo seja feito por uma equipe especializada. Nomes que já nos deixaram - de Gal Costa a John Lennon - veem seu legado ser levado adiante em perfis oficiais que oferecem conteúdos novos aos fãs saudosos. E o mercado independente, que, antes da internet, mal poderia sonhar em viver da própria produção, encontrou nas redes sociais um veículo barato para disseminar músicas muitas vezes mais experimentais do que o gosto popular do momento.

REVOLUÇÕES POR MINUTO

A facilidade de abrir um perfil e compartilhar conteúdo fez com que inúmeros artistas fossem descobertos pelo público sem a ajuda de grandes companhias (pense em Mallu Magalhães, por aqui, ou em Justin Bieber e Billie Eilish, lá fora).

 Lorem Autem

Caroline Steinhorst: "O excesso de informação tem levado a uma exaustão digital"

E é bom lembrar que, na pandemia, foi através das redes sociais que os artistas conseguiram continuar se conectando com seu público enquanto o mundo se fechava para o encontro físico. "É claro que a remuneração por royalties provindos de reprodução fonomecânica não se compara com shows, mas vimos o maior pico de lives da história do YouTube acontecer no Brasil. E com as lives, vieram as publis, os artistas reforçando posicionamentos e muita troca de audiência digital", recorda Mattoso.

Mas exatos 20 anos depois que Orkut e Facebook estrearam suas páginas na internet, o estado das coisas parece ser muito mais de atenção do que de euforia. Aquela facilidade de acesso também trouxe uma saturação de conteúdo, tornando as redes sociais um espaço cruel de competição para quem produz conteúdo, e sinônimo de ameaça à saúde mental de quem os consome. Além disso, foram tantas mudanças neste segmento - do Myspace para o Orkut, depois Facebook, Twitter, Instagram e TikTok, sem citar redes menores e aqueles que não vingaram muito - que muitos artistas simplesmente não conseguiram acompanhar as transformações. "O excesso de informação e a constante pressão por conteúdo têm levado a uma espécie de exaustão digital, tanto para os artistas quanto para o público", reconhece Caroline Steinhorst.

PADRONIZAÇÃO SONORA E ESTÉTICA

O britânico Dave Stapleton fundou o seu selo Edition Records em 2008, quando o Myspace ainda era o site mais acessado do mundo. Nestes 16 anos, ele viveu na pele os resultados positivos e negativos que as redes sociais trouxeram ao mercado musical. "Do lado positivo, as redes sociais diminuíram a nossa dependência dos gatekeepers tradicionais da indústria musical, permitindo-nos alcançar e construir públicos de forma mais direta. Essa mudança promoveu uma maior diversidade e originalidade no tipo de música produzida. Para o selo, significa que podemos cultivar o nosso próprio ecossistema de públicos, interagindo diretamente com eles e nos beneficiando de margens de lucro mais elevadas. Além disso, a liberdade e a flexibilidade oferecidas pelas plataformas de redes sociais estimularam mais criatividade entre os artistas, incentivando-os a explorar e inovar sem as restrições dos meios de comunicação tradicionais.”

 Lorem Autem

David Stapleton

Stapleton, porém, alerta que, no limite, as redes sociais podem prejudicar o próprio mercado musical. "Os artistas que estão menos inclinados a interagir com as redes sociais podem ter mais dificuldade em ganhar visibilidade, deixando de lado boas músicas que poderiam ter encontrado um público num cenário menos agitado. Talvez um dos impactos mais preocupantes seja a desvantagem que os músicos da geração mais velha enfrentam nesta nova era digital. A ênfase no apelo a um público jovem pode muitas vezes resultar numa música que dá prioridade ao estilo em detrimento da substância, ofuscando a profundidade e a maturidade que os músicos experientes trazem para a mesa.”

"Artistas menos inclinados a interagir nas redes têm mais dificuldade de ganhar visibilidade, deixando de lado boas músicas que poderiam ter público num cenário menos agitado.

David Stapleton, fundador do selo britânico Edition Records

Essa padronização sonora e estética tem tudo a ver com a evolução do algoritmo e suas recomendações que 'preveem' o que o usuário quer assistir. Foi ele o grande responsável pela explosão do TikTok (que tornou-se o app mais baixado do mundo em 2023, com mais de 1 bilhão de downloads) e fez o Instagram e o YouTube Shorts adotarem mecanismos parecidos. "Os algoritmos estão cada vez mais inteligentes e entregam mais daquilo que estamos acostumados a ver. Isso cria um desafio enorme para artistas que querem furar a bolha e atingir o mainstream. Nosso desafio já é e vai passar a ser cada vez mais ‘como eu furo essa bolha?’”, diz Bruno Trindade, sócio-diretor da b+ca.

Qualquer momento 'bola de cristal' sobre o tema precisa levar em conta a inteligência artificial. "Vemos o uso de IA impactando nosso consumo cada vez mais de diversas maneiras, e criando ainda mais nichos. Hoje, na internet, já temos a sensação de que existem mundos paralelos com pessoas que têm milhões de seguidores e nunca ouvimos falar. Rola aquele choque, quando descobrimos, e a constante pergunta: como eu não conhecia essa pessoa ainda? Ao mesmo tempo, é algo que impulsiona o fortalecimento dos nichos e da música independente. O uso de IA para curadoria personalizada de música, por exemplo, torna o descobrimento de novas canções e artistas uma experiência incrível", pondera Bruno Trindade.

 Lorem Autem

Bruno Trindade

Há também quem aposte que vem aí uma desacelerada geral. "Enxergamos a tendência do slow content crescendo cada vez mais. Menos quantidade e mais qualidade, menos saturação e mais conexão com o público. Para isso, o artista precisa explorar canais que possibilitam crescer e trabalhar sua base de fãs, como newsletter, grupos no Telegram e WhatsApp, por exemplo. Nessa era de excessos, onde todos querem ser vistos, vemos a criação de relacionamento direto com o público cada vez mais potente e sendo mais importante do que ter uma grade obrigatória de inúmeros conteúdos no feed e stories por semana", diz Caroline Steinhorst.

É O FIM DA MÚSICA COMO A CONHECEMOS?

Se nada era muito claro naquele longínquo 2004, ninguém parece ainda ter muita certeza de qual será o próximo capítulo da saga protagonizada pelas redes sociais na indústria da música. "Historicamente, as tendências no mundo da música e do entretenimento são cíclicas, e novas plataformas e formatos surgem regularmente", lembra Thiciane Rosa.

Convém ficar de olho nas plataformas de música. Em fevereiro, o Spotify estreou um novo feed que reproduz vídeos de até 30 segundos e faz uso de hashtags. Soa familiar? "Os recursos parecem ter sido projetados para condensar a audição do álbum em uma experiência rápida. Diga-nos que você está tentando ser o TikTok sem nos dizer, Spotify", brincou o site TechRadar em uma crítica publicada em fevereiro. No ano passado, a revista digital já tinha classificado de "tiktokzação" as mudanças da plataforma fundada por Daniel Ek em 2006.

"O panorama das plataformas de streaming e das mídias sociais está cada vez mais convergindo, com serviços combinando recursos para oferecer uma mistura de elementos de áudio, vídeo e narrativa. O Spotify, por exemplo, está aprimorando o envolvimento visual por meio de recursos como Canvas e Clips, enquanto o TikTok, tradicionalmente uma plataforma de mídia social, está se aventurando no streaming de áudio. Esta tendência cria uma expectativa crescente de que os artistas não apenas produzam música, mas também criem narrativas imersivas que abrangem experiências visuais e auditivas, promovendo colaborações mais profundas entre artistas visuais e músicos. A integração de áudio, vídeo e narrativa numa expressão artística unificada está cada vez mais virando uma norma.", aposta Dave Stapleton.

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